Numa tarde cinzenta de final de outono, as portas do pequeno apartamento no Montijo fecharam-se com um estrondo surdo. Do lado de fora, Salomé, mulher de rosto cansado e passos hesitantes, levava consigo apenas duas malas gastas e um silêncio pesado que dizia mais do que qualquer grito.
A casa que outrora fora o seu refúgio tornara-se cenário de desentendimentos profundos. A convivência com a filha Tânia, outrora marcada por cumplicidade, havia-se tornado insustentável. As razões eram tantas quanto complexas — antigas mágoas, desencontros recentes e uma tensão crescente que explodiu num adeus forçado.
Os vizinhos, habituados à rotina discreta da senhora Salomé, começaram a notar movimentações estranhas. Ruídos fora de hora, discussões abafadas e, mais tarde, uma ausência súbita. O apartamento, antes cuidado com modéstia mas com zelo, começava a dar sinais de abandono.
Quem por ali passava não conseguia ignorar o cheiro de mofo que se espalhava pelas escadas. As janelas estavam fechadas há semanas e pequenos detalhes denunciavam uma degradação lenta — caixas empilhadas no corredor, cortinas rasgadas, restos de móveis ao lado do contentor.
A chegada de Tânia, meses antes, prometia ser uma ajuda. A mãe, já com a saúde fragilizada, via na presença da filha mais nova uma oportunidade de companhia e apoio. Mas a promessa deu lugar a um quotidiano difícil, marcado por cobranças, gestos ásperos e uma frieza crescente.
Diz-se que há casas que absorvem os sentimentos de quem lá vive. Se isso for verdade, aquele apartamento tornou-se, em poucos meses, um receptáculo de mágoas. As paredes, que já haviam escutado risos de netos e histórias de infância, agora ecoavam silêncios desconfortáveis.
A saída de Salomé não foi apenas física. Foi um corte emocional profundo, uma perda de chão. Levava consigo a dor de quem sente que foi expulsa não só de uma casa, mas do espaço simbólico da maternidade partilhada.
Enquanto isso, do lado de dentro, Tânia permaneceu. As razões que a levaram a assumir o imóvel permanecem envoltas em mistério. Uns dizem que quis proteger a mãe de si própria. Outros, que procurava um lugar para si, mesmo que à custa do bem-estar alheio.
Os proprietários do imóvel, apanhados de surpresa, tentaram contactar quem figurava no contrato: Sofia, a filha mais conhecida de Salomé. Mas do outro lado, a resposta não veio. Apenas o silêncio de quem talvez não soubesse como reagir.
Foi uma vizinha, atenta e preocupada, quem começou a contar a história. Não por maldade, mas por impotência. Viu a degradação do espaço, o abandono da senhora que sempre lhe sorria no elevador, e sentiu que algo precisava ser dito.
Com o tempo, surgiram relatos de dívidas, contas em atraso, telefonemas ignorados. A tensão alastrou-se como uma névoa densa. A casa, agora maltratada, já não lembrava em nada o lar acolhedor de outros tempos.
Do outro lado da cidade, Sofia tentava equilibrar a vida profissional com o vendaval emocional. Nas entrelinhas do que dizia publicamente, era possível sentir um cansaço profundo. Falava de terapia, de dias difíceis, de uma vontade de desaparecer por uns tempos.
Para quem a seguia, as palavras pareciam desabafos soltos. Mas para os mais atentos, eram sinais de uma filha dividida entre a responsabilidade, a mágoa e a tentativa de manter alguma sanidade num mar de culpa.
Salomé, por sua vez, passou a contar com a ajuda de amigos. Encontrou abrigo temporário, consolo em pequenas gentilezas e um novo tipo de silêncio — menos agressivo, mais resignado. Sentia-se esquecida, mas não derrotada.
Na rua onde vivera por tantos anos, a ausência da senhora de passos lentos é comentada com pesar. Alguns sentem falta do “bom dia” matinal. Outros recordam os dias em que Salomé ajudava a cuidar dos filhos da vizinhança.
A história espalhou-se como só as histórias de bairro sabem fazer. Cada um com sua versão, cada um com seus julgamentos. Mas todos com uma certeza: há algo profundamente triste quando uma mãe e uma filha deixam de se reconhecer.
Tânia continua no apartamento, agora mais vazio do que nunca. Entre móveis partidos e ecos de discussões passadas, talvez também ela procure entender o que se perdeu. Nem sempre o que resta é conforto — às vezes, é só ruína.
No fim, não há vencedores. Apenas mulheres marcadas por escolhas difíceis, mágoas antigas e laços que se romperam sem aviso. E uma casa, silenciosa, como testemunha de tudo.