Morreu, autor de Assim nasceu…ver mais

Um percurso entre Portugal e os Países Baixos marcou a vida e a carreira de Fernando Venâncio. Depois de se licenciar em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa, fixou-se nos Países Baixos, onde lecionou língua e cultura portuguesas na Universidade de Amesterdão. Essa experiência internacional moldou a sua perspetiva sobre a língua portuguesa, dotando-o de uma visão comparatista e distanciada que se refletia com clareza nos seus ensaios.

Ao longo das décadas, Fernando Venâncio colaborou com diversas publicações portuguesas e estrangeiras, escrevendo sobre língua, literatura e política cultural. Era conhecido por um estilo direto, muitas vezes mordaz, que não poupava críticas a dogmas estabelecidos nem a tendências hegemónicas nas instituições linguísticas. Para Venâncio, a língua era antes de mais um espaço de liberdade e reflexão.

Para além de Assim nasceu uma língua, publicou também Pelas Duas Línguas (2021), uma coletânea de textos que cruzam o português de Portugal e o do Brasil, sempre com o intuito de compreender e aproximar. Era um defensor do diálogo entre as variantes da língua portuguesa, embora sem cair em idealismos uniformizadores.

Fernando Venâncio era igualmente um polemista hábil e provocador. Nas redes sociais e em conferências, fazia questão de questionar convenções linguísticas, atacando o purismo e os preconceitos gramaticais com humor e erudição. Para muitos leitores, ele representava uma voz lúcida num campo onde, por vezes, a paixão cega o rigor.

Além da atividade académica e ensaística, foi também tradutor e crítico literário. Traduziu obras do neerlandês para o português e vice-versa, sempre atento às nuances do estilo e às armadilhas da equivalência cultural. Essa experiência reforçava a sua convicção de que traduzir é, também, uma forma de pensar a própria língua.

Apesar de viver fora de Portugal durante grande parte da sua vida, manteve uma relação constante com o país, regressando com frequência para conferências, encontros literários e lançamentos dos seus livros. Nos últimos anos, aproximou-se ainda mais das suas raízes alentejanas, passando longas temporadas em Mértola, a vila que sempre invocava com afeto.

A sua morte em Mértola, aos 80 anos, fecha um ciclo de vida dedicado ao estudo e à celebração da língua portuguesa. Figura respeitada, mas também desafiadora, Fernando Venâncio deixa um legado que continuará a influenciar estudiosos e leitores atentos ao modo como falamos, escrevemos e pensamos em português.

A sua escrita era, antes de tudo, um exercício de clareza. Rejeitava os jargões excessivos e os malabarismos estilísticos, preferindo a substância à aparência. Essa postura granjeou-lhe tanto admiradores fervorosos quanto críticos acérrimos, mas nunca o deixou indiferente ao debate público.

Na universidade, era um professor exigente, mas inspirador. Os seus alunos recordam-no como alguém que fazia da língua uma matéria viva, atravessada por história, cultura e ideologia. Muitas gerações de estudantes neerlandeses tiveram nele o primeiro contacto sério com o português europeu.

Em Portugal, teve um papel importante na revalorização do galego como parte da matriz do português, desafiando a narrativa tradicional que privilegiava apenas a herança latina. Nesse sentido, aproximava-se de correntes galeguistas, ainda que sem militância ativa, o que lhe valeu reconhecimento no meio académico galego.

Fernando Venâncio via a história da língua como uma sucessão de escolhas culturais e políticas, mais do que um percurso inevitável. Essa visão conferia-lhe liberdade para questionar versões canónicas e promover um debate informado, mesmo quando isso significava confrontar instituições como academias e universidades.

O seu desaparecimento representa uma perda irreparável para o estudo da língua portuguesa. Fica, no entanto, uma obra vasta e rigorosa, que servirá de referência para os que desejem pensar criticamente sobre a evolução da língua e os seus impasses contemporâneos.

Amigo de vários escritores e linguistas, cultivava também o isolamento criativo. Gostava de caminhar sozinho, de escrever longe do ruído mediático e de manter uma relação serena com a literatura. Lia muito, mas escrevia apenas quando sentia que tinha algo a dizer — e dizia-o com precisão.

A sua vida é exemplo de como a paixão por uma língua pode atravessar fronteiras, unir culturas e gerar pontes de entendimento. Fernando Venâncio foi, nesse sentido, um verdadeiro cidadão da lusofonia — ainda que muitas vezes crítico dela.

A editora Guerra & Paz, que publicou parte significativa da sua obra em Portugal, lamentou publicamente a sua morte e destacou o seu contributo intelectual para a língua portuguesa. Diversas homenagens já estão a ser organizadas em círculos académicos e literários.

O legado de Fernando Venâncio continuará a ser lido, discutido e celebrado. A sua morte encerra uma biografia marcada pela coerência intelectual, pela paixão pela língua e pela coragem de pensar contra a corrente.

Em tempos de discurso fácil e posições dogmáticas, a clareza do seu pensamento fará falta. Mas permanece a sua obra, como bússola e provocação para novas gerações de estudiosos da língua portuguesa.